Cada milionésima parte de segundo contém Deus e Ele transborda por todos os lados sem fim, sem começo, sem limites imagináveis, visto que não os há.
Tenho pensado muito nisso. Esta citação — extraída de L’Expatrié — Journal 1984–1990, de Julien Green, cuja leitura enfim concluí na semana que passou e sobre a qual ainda quero escrever — condensa muito bem algo que sempre intuí e nunca consegui pôr em palavras, e explica, creio eu, certa ânsia que noto surgir em mim de tempos em tempos de simplesmente dar uma volta, olhar uma planta, uma flor.
Quando olho uma flor, não preciso fazer esforço para perceber e sentir a ação divina ali, naquele serzinho tão perfeitinho, tão delicado, cuja beleza é um universo em si mesmo. E como são variados os tipos de flor! É como se cada uma representasse uma postura distinta diante da vida, um temperamento, um caráter próprio — como talvez pareçamos nós aos olhos de Deus, aliás.






Desde o último Periódico, muitas coisas importantes aconteceram do lado de cá — tantas, e tão determinantes, que é difícil até organizar as ideias.
As mais importantes delas, contudo, aconteceram de maio ou junho para cá: entre abril e maio, minha sogra foi diagnosticada com câncer e submetida a uma cirugia, para no início de junho descobrir que tinha outros focos da doença, que já se espalhava por outros órgãos. De longe, sem podermos vê-la no dia a dia e sem sabermos de muitos detalhes, ficamos apreensivos e decidimos antecipar a nossa viagem ao Brasil — viagem essa que, por si só, teria um peso enorme: seria a primeira vez que retornaríamos desde que viemos para o Canadá, sete anos atrás.
*
Embarcamos no sábado, 6 de julho. Foi uma viagem enorme, extenuante, com duas conexões intermináveis. Na primeira, nos Estados Unidos, passamos as quase onze horas entre um voo e outro na capela ecumênica do aeroporto de Washington, rezando por um milagre. Dois dias antes do nosso embarque, minha sogra havia sido internada mais uma vez e, apesar de não termos noção da gravidade da situação, intuíamos.
Esperamos ali por uma missa que jamais aconteceu. As horas passaram, a noite caiu e logo era hora de embarcamos para São Paulo.

Longo voo. Dormimos pouco e mal. Chegando em Guarulhos, levamos muito a encontrar a capela — uma capela que mais parecia um uma sala de espera estéril, completamente despida de qualquer símbolo, de qualquer pista da possibilidade da transcendência, em qualquer crença ou religião. Ao fim da tarde, embarcamos novamente.
Florianópolis recebeu-nos fria e chuvosa. Do aeroporto, fomos direto ao hospital, onde passamos algumas horas com minha sogra e familiares. Meu marido passou a noite em claro ao lado da mãe.
Nas primeiras horas da manhã do dia 8, ainda antes do raiar do sol, sentou-se para descansar as pernas e, exausto, caiu no sono por não mais que dez minutos. Quando acordou, num sobressalto, a mãe já havia partido.
*
Em meio à confusão desses dias, um grande consolo: o apoio e o cuidado dos amigos foi maior do que poderíamos conceber. Amigos que não víamos há anos vieram a nós com palavras de conforto; amigos recentes incluíram a minha sogra e a família em suas orações e em intenções de missa.
Depois da primeira semana de viagem, segui o plano original de passar dias com a minha família. Minha mãe teve a bondade e a paciência de me levar a todo canto pelo estado. Consegui ver e abraçar muita gente; vi o meu irmão e finalmente conheci o meu sobrinho, com quem brinquei exaustivamente, para minha grande alegria; visitei tios, primos, avô, e ainda pude rever amigos muito queridos de longuíssima data.
Ter a alegria imensurável de reencontrar, em carne e osso, tantas pessoas queridas, de passear por lugares conhecidos, de sentir novamente sabores e cheiros que me eram tão familiares logo após o baque profundo da perda foi uma experiência surreal. Percorrer a cidade onde cresci depois de tanto tempo fora fez-me sentir como se, sobre a camada funda da realidade tão familiar de outras décadas, houvesse um verniz de irrealidade que a distorcesse; não era a mera nostalgia — era uma sensação onírica e assombrosa, ao mesmo tempo doce e triste.1
*
Ao fim da viagem, um querido conhecido nosso nos fez a gentileza de nos levar ao aeroporto de Florianópolis. No caminho, perguntando ao meu marido como ele estava, contou-lhe sobre como passou pela perda de sua própria mãe, anos atrás, e aconselhou: “Daqui em diante, tens que te concentrar em cultivar boas lembranças dela, em lembrar dela quando olhas para coisas bonitas, como uma flor”.
Meu marido e eu nos entreolhamos: minha sogra adorava flores. Nas semanas entre o diagnóstico e a nossa viagem, sugeri a ele que enviasse a ela fotos bonitas das que vemos por aqui, já que na primavera e no verão os canadenses adornam os quintais com muitas e coloridas flores. Ele decidiu enviar-lhe uma foto por dia, todos os dias. (Mais tarde, conhecidos dela vieram dizer a ele que sua mãe mostrava com grande alegria as fotos que ele lhe enviava.)

*
O retorno para o Canadá foi marcado por mais duas longas conexões: em Guarulhos novamente, onde passamos o dia conversando sobre os acontecidos; e em Chicago, onde visitamos a capela “ecumênica”, surpreendentemente católica. Dizia um anúncio: missas todos os domingos, às 11h30 da manhã. Duvidei. Saímos de lá, demos uma volta, descansamos. Pouco depois das 11h30 voltamos à capela — e eis que lá estavam o padre e o seu assistente, a missa em curso mesmo sem mais fiéis a acompanhá-la. Entramos, sentamo-nos. Mais uma experiência surreal — desta vez mais doce do que triste — e uma sensação de fechamento: finalmente pudemos ver a missa que tanto desejáramos três semanas antes. Ao final da celebração, o padre conversou brevemente conosco e nos desejou um tranquilo e abençoado retorno para casa.
*
De volta a Ottawa, um casal de amigos fez questão de nos buscar no aeroporto. Ainda outra singela surpresa coroou a viagem: deram-nos de presente um vaso de lírios da paz, fazendo votos de que as flores nos ajudassem a encontrar paz e consolo.
Todas essas pequenas “coincidências” tocaram-me profundamente. São raras as vezes em que sentimos Deus agindo através das pessoas, mas nesta viagem as ocorrências foram inúmeras e impossíveis de ignorar.
*
De volta.
Sei que Deus está em tudo, em todo lugar, mas me parece muito mais difícil encontrá-Lo em meio ao hediondo concreto e ainda mais improvável vislumbrá-Lo nas linhas de uma planilha de Excel, no piscante cursor do Word, no algoritmo das redes, por mais que nos esforcemos.
Tendo passado a semana inteira sem internet em casa (porque, francamente, que bela porcaria era o provedor que tínhamos contratado), experimentei momentos solitários e silenciosos, especialmente no almoço, coisa que me fez muito bem: pude acalmar os nervos e pousar o olhar sobre objetos reais, com volumes, formas, cores, tamanhos distintos e em diferentes distâncias, como se apresentam no mundo; lembrei que Santa Hildegarda recomendava, para o alívio das vistas cansadas, contemplar um amplo campo verde, quantas vezes fosse possível e necessário. Pude ouvir e atentar aos ruídos do mundo real que me cerca — chuva caindo; pássaros cantando; esquilos brigando por território, agoniados, de um lado para o outro; cigarras a todo vapor em seu trabalho estival; um ou outro corredor amador batendo os pés no calçamento; conversas, geralmente animadas, de transeuntes em roupas frescas de verão.
Pensei muito em tudo o que se passou nesses últimos meses, principalmente neste último mês e meio — por um lado, numa tentativa forçada de repassar e compreender todos os acontecimentos, as emoções, as coisas que vi e em que pensei; por outro lado, porque esses pensamentos transbordam independentemente da minha vontade, e não há o que eu possa fazer para os conter.
Contemplando o movimento das plantas à brisa que batia na fachada do prédio, pensei muito no meu avô — meu único avô vivo… —, na sua casa e no pomar que ele e a vó plantaram no quintal, intencionalmente (como os dois ou três tipos de laranjas que ele cultivou com o carinho que dispensa a todas essas coisas singelas) ou acidentalmente (contou ele, risonho, que o limoeiro que hoje se ergue rente à churrasqueira foi fruto de um feliz acidente: em dias mais festivos, quando minha avó ainda era viva e estava bem, meus avós faziam churrasco com frequência; o limoeiro brotou no lugar em que jogavam as sementes dos limões usados nas caipirinhas. Um fruto não planejado, mas muito bem-vindo).
Pensei muito nas minhas avós, na minha bisavó, na minha sogra; no quanto são estranhas e cruéis essas primeiras fases do luto; e lembrei muito de quando a minha vó materna morreu, repentinamente, às vésperas do Natal; de como me pareceu por muito tempo que ela estava apenas distante e incomunicável — o senso de irrealidade, de que a pessoa ainda está lá, que ainda está por aí, mas não pode nos ver nem atender ligação alguma, como se fizesse uma prova ou estivesse numa consulta —, mas que em algum momento eu poderia novamente falar com ela, vê-la, abraçá-la.
Talvez o luto tenha mesmo algo deste elemento: algo como uma fração, humaníssima e dolorosa, da Eternidade. Creio, sim, que um dia, se Deus quiser, reencontrarei todas estas pessoas, em circunstâncias infinitamente mais felizes. E acredito, sim, que Deus está em tudo — em “cada milionésima parte de segundo, (…) sem limites imagináveis” —, e de uma maneira muito mais densa e avassaladora do que sequer conseguimos conceber.
Sensação esta que talvez encontre uma boa expressão nesta música, que, enquanto eu escrevia esta edição — e durante toda a semana que passou —, não saía da minha cabeça. Uma melodia agridoce, como diria o outro.
Ótimo lê-la de novo, Ana. Para além da beleza, flores são também recomeços. Os caminhos de Deus são insondáveis a nós, pecadores, mas, seja como for, Ele nos dá sempre a oportunidade do recomeço, aqui ou perto de Si.
Sinto muito pela sua sogra! Mas fico feliz por poder ler seu texto; suas palavras ressoaram em mim. Você faz falta por aqui.