A melancolia da mudança
Notas sobre “Pai e Filha” (Ozu, 1949) e o fluxo da vida | Periódico nº 24
Ano passado, tive a felicidade de começar a explorar a filmografia do diretor japonês Yasujiro Ozu, que conhecia só de nome. Aqui em casa, tínhamos assistido somente a Good Morning (1959), que, apesar de divertido, não me tocou (e agora vejo que eu provavelmente não o entendi). Então resolvemos ver outros filmes dele: Era Uma Vez em Tóquio (1953), filme lindíssimo, causou-me impressão tão forte que acabei-o em lágrimas (e fiz das lágrimas motivação para escrever esta edição do Periódico); e, mais recentemente, Pai e Filha (1949), que também me tocou muito, pessoalmente falando. Por coincidência, este último trata de certos temas em que tenho pensado bastante nas últimas semanas — sabe como é, dezembro e janeiro são meses em que todas aquelas tralhas emocionais que jogamos para o canto durante os meses mais ocupados se fazem notar e sentir, e tal.
Como acredito que um dos benefícios da boa arte é justamente o de fazer-nos refletir sobre a vida de maneira geral, e, mais particularmente, sobre a nossa postura diante da própria vida, pensei que seria interessante trazer a minha interpretação sobre o filme e algumas notas pessoais que, espero, sejam proveitosas.
Quem avisa amigo é: haverá “spoilers”. Falarei livremente sobre a minha interpretação do filme e de certos aspectos da sua história. Acredito que, com raras exceções, nada substitui a experiência de ver um bom filme ou ler um bom livro, e meu intuito é sempre recomendar vivamente as obras de que falo com empolgação aqui no Periódico. Fica a critério do leitor assistir ao filme antes ou depois de ler esta edição (ou não o assistir, se não o quiser).
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Na história, o professor Shukichi Somiya e a sua única filha, Noriko, moram juntos e vivem uma vida tranquila. O pai é viúvo — o filme não nos conta como e quando a sua esposa teria falecido. Noriko, a filha, é uma moça de 27 anos e parece ter assumido o papel da dona de casa, cuidando alegremente do lar e servindo ao pai através dos serviços domésticos.
Apesar da idade, Noriko não quer saber de casar; e, de início, seu pai não vê problema na postura da filha — na verdade, o assunto do casamento da moça só vem à tona quando um amigo e a tia de Noriko o mencionam ao pai, inculcando-lhe a questão como um problema. Quando indagada a esse respeito, Noriko recusa inúmeras vezes a ideia mesma de casar-se, afirmando que prefere manter a vida da maneira como é. O filme trata desse conflito e de sua resolução.
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As minhas palavras, é claro, não dão conta de transparecer a beleza e a profundidade do filme. Desde que o vi pela primeira vez, tenho tentado entender o motivo de este filme ter me tocado tanto — Pai e Filha é, para mim, um daqueles filmes que vai crescendo e tomando um corpo mais robusto à medida que o efeito imediato da sua beleza vai se desvanecendo e a sua história vai se assentando na memória.
Pai e Filha é um filme que trata da melancolia das transições da vida. De início, identifiquei-me muito com Noriko: mesmo sabendo que certas mudanças não só são iminentes, como também necessárias e salutares, também eu tenho a tendência a querer conservar as coisas como elas estão; reconheço bem a ânsia de retornar a outros tempos.
Porém, não há mais vida no passado. Buscando conservar aquela realidade que vê como perfeita e irretocável, o que Noriko sem querer acaba fazendo é apegar-se a um estado quase infantil da sua existência, ignorando que, independentemente de sua vontade, o tempo passará e, com ele, aquela realidade. No fundo, ela teme a mudança porque teme a marcha da vida — que é sempre por diante, inevitavelmente para a frente.
As lágrimas de Noriko no dia de seu casamento não são estritamente de tristeza, mas de uma delicada nostalgia, e deixam transparecer a saudade antecipada daquilo que se observa e acaba no mesmo instante: o pai dela recebe o seu agradecimento por todos os anos que viveram juntos e mal reage, porque também ele tem plena consciência de que aquele momento representa uma espécie de morte — mas uma “morte” que levará à vida; e porque sabe que deveria tê-la incitado à vida muito antes. Com a sua anuência à recusa da filha, o pai, querendo ou não, deixa de exercer uma das funções paternas, que é a de “empurrar” os filhos para fora de casa no momento certo. Os motivos pelos quais ele a mantinha em casa eram, no fundo, tão cômodos e estreitos quanto aqueles aos quais a filha se apegava para não o deixar. Também ele precisava aceitar a transição para uma nova fase da vida, deixando de lado o papel do pai que cuida e assumindo o papel do pai que deixa a prole ir embora e seguir o seu caminho e que, assim, volta a assumir uma individualidade com a qual já não está mais habituado.
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E não é assim conosco também? Acaso não adiamos escolhas — às vezes óbvias — por nos prendermos a um momento, a uma ilusão, a uma ideia de quem somos (ou queremos ser)? Não o digo apenas em termos de mudanças de marcos mais evidentes como o casamento, mas também na escolha por manter-se no emprego atual ou mudar de emprego ou até de carreira; na decisão de mudar de cidade, de estado, de país; e mesmo em algo talvez menos drástico, como na mudança de estilo de vida — quantas vezes não conseguimos adotar melhores hábitos porque, apesar de não nos servirem mais, os hábitos de nossos “eus” passados compõem a única forma de levar a vida que conhecemos?
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Crescer e amadurecer é mesmo doloroso. Uma vez alcançada e vivida a presente fase, abandoná-la, como quem percebe e aceita que é chegada a hora de cair suavemente nos braços da próxima fase antes que a vida assim se lhe imponha, pode ser um ato de amor à vida mesma.
É preciso aceitar que transições são inevitáveis e acontecerão a despeito da nossa vontade. Tais mudanças não vêm sem medo e sem tristezas — mas as suas dores são as dores do crescimento. Viver é constantemente deixar partes de nós morrerem para que outras, novas, nasçam — e esse processo carrega uma beleza alegremente triste e singular.
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Eu poderia dissecar o filme sob mil aspectos, mas não há como substituir a experiência de assistir a ele. O cinema de Ozu é uma descoberta recente minha; tive uma professora no curso de Cinema que era apaixonada pelo diretor, mas eu mesma nunca tinha dado muita bola para seus filmes — e, a bem da verdade, fico muito feliz por não os ter visto quando era mais nova, pois certamente me faltava a maturidade para entender as singelezas e nuances de seu estilo e suas narrativas tão ricas e profundas.
Caso o leitor tenha ficado interessado em assisti-lo, no momento em que escrevo esta edição o filme está disponível para streaming nos seguintes serviços: Belas à la carte, Oldflix e Lumine.
Além disso, no canal do meu mais novo projeto, o Entremeios, está disponível uma baita conversa sobre esse filme com o pintor e ilustrador Gabriel Kenji. A conversa foi sensacional — além de termos destrinchado a obra com calma, o Gabriel trouxe mil observações muito perspicazes sobre o significado de elementos do filme que compõem a sua narrativa e a inserem no contexto histórico do Japão do pós-guerra. Sei que sou muito suspeita para falar, mas eu não perderia por nada!
(Aliás, Gabriel e eu conversamos também sobre Era Uma Vez em Tóquio (1953), também de Yasujiro Ozu, na segunda parte da nossa conversa, que entrará no Entremeios a partir da segunda metade de fevereiro. Se o leitor tiver interesse, recomendo assistir ao filme antes — e, claro, inscrever-se no canal para não perder as próximas conversas!)
Em tempo —
Neste último mês, fiquei pensando muito no que escreveria aqui — aliás, sempre o faço, mas desta vez tinha um motivo especial: o Periódico faz um ano agora no fim de janeiro e, precisamente nesta época tão especial, me faltavam as palavras.
Com a enxurrada de memórias e de emoções suscitadas pelo filme, me peguei lembrando de quando conversei com minha amiga Inês sobre a ideia de começar uma newsletter. Meu intuito era dar vazão e sentido à minha ânsia pela escrita. Estava cansada de escrever só para mim; sentia-me cada vez mais isolada e tapada — foi a palavra que usei, bem lembro —, e julgava que escrever e não ser lida, embora ruim, seria melhor do que continuar me encerrando em mim mesma.
Em janeiro do ano passado, comentei no Instagram que tinha essa vontade — e, para me forçar a realizá-la, coloquei o link para este Substack nos stories. Ainda lembro bem de como me alegrei ao finalizar o que seria a primeira edição e de como estremeci (literalmente, e muito) ao programar o primeiro envio.
Talvez soe meio besta, mas começar o Periódico foi um passo importantíssimo para mim — foi uma pequena mudança, mas muito significativa. Não só porque manter a periodicidade é desafiador, mas, sobretudo, porque escrever para ser lida é um exercício muito consciente de exposição voluntária. Percebi que se eu me deixasse levar pelo medo de expor as minhas ideias, não teria chance alguma em qualquer trabalho criativo, independentemente do que viesse a ser este trabalho, por mais que o quisesse.
Neste último ano, o Periódico tornou-se parte importante da minha vida — não há uma semana em que não me ocorra alguma ideia de tema para tratar aqui, e tento manter a constância e a qualidade das edições (com razoável sucesso, espero). Além de uma forma de articular ideias e de apresentar aos leitores obras como o filme Pai e Filha, o Periódico se tornou uma ferramenta de desenvolvimento para mim: quero melhorar isso, quero experimentar aquilo, quero escolher temas cada vez mais instigantes e trazer edições cada vez melhores.
Gostaria de agradecer aos leitores pelas inúmeras mensagens de apoio e pelas incríveis sacadas que vocês me dão ao compartilhar comigo as suas impressões sobre esta ou aquela edição. Estou me esforçando para trazer edições ainda melhores este ano e espero que possamos continuar a conversa (e ensejar tantas outras, cada vez mais interessantes).
Muito obrigada pela confiança!
Ozu é realmente um realizador incrível. Sou apaixonada pela sua sensibilidade mesmo “em rodagem”.
Percebo a conexão do filme. Achei em todos uma coisa que me fez gostar dele para sempre.
A capacidade de falar de coisas que à partida até poderiam ser simples mas tem sempre um peso emocional com um certo peso que não nos deixa indiferentes.
Recomendo o “Bom dia.” Aliás, recomendo todos.
Existe também um documentário do Wim Wenders sobre o Ozu muito interessante.
E, parabéns pelo texto!
Eu pensava sobre isso há uns dias: como alguns desafios e dramas de pessoas próximas parecem tão grandes que eu mesma não conseguiria me imaginar lidando com eles. Mas é provável que essas mesmas pessoas digam algo parecido sobre os meus, justamente porque aprendemos a conviver com certas realidades e elas passam a fazer parte de quem somos. Sair delas é sair para o desconhecido, deixar o que já nos é familiar. Você descreveu muito bem: essa é a única forma que eu conheço de levar a vida. Esse periódico me fez voltar a pensar nisso, e de alguma forma, me desafiar a enfrentar essas possíveis realidades que parecem tão assustadoras. Obrigada, Ana!