Escrevo-lhes hoje uma edição que vinha planejando há algum tempo e que é, ao mesmo tempo, um apanhado de notas dispersas aqui e ali e uma síntese de aprendizados mais recentes sobre o tema da constância. Venho meditando sobre essa virtude desde 2022, quando comecei a escrever páginas matinais como forma de, finalmente, me comprometer comigo mesma a escrever diariamente, nem que fosse apenas para dar vazão às minhas frustrações.
Tendo firmado esse compromisso comigo mesma, firmar outros compromissos — e cumpri-los, de fato, por mais percalços que o caminho apresentasse — tornou-se um pouco mais fácil. Eu, que passara a vida até então tentando ser disciplinada e acabava sempre me engessando, de repente estava conseguindo seguir firme em mais de um compromisso. À medida que os meses passavam, a sensação de impotência diante da vida foi diminuindo e comecei a sentir que tinha, de fato, certo poder de ação diante das opções que me eram apresentadas.
Nesta edição, escreverei sobre coisas que aprendi a duras penas para conseguir dar conta do meu próprio ritmo de trabalho e para iniciar novos projetos que trouxeram novos propósitos, como o próprio Periódico (que, aliás, completará um ano no fim de janeiro!).
Antes de mais nada: o que é constância?
É curioso esse fascínio que nós temos com a constância, porque, em rigor, não há nada de essencialmente misterioso nela: constância é, literalmente, fazer uma mesma coisa (ou uma série de coisas) repetidamente, de modo regular, assíduo.
Ouvi alguém falar num podcast que, se fôssemos gravar o dia a dia de um atleta de elite — categoria que requer uma familiaridade ímpar com a repetição exaustiva —, ficaríamos incrivelmente entediados: a rotina de pessoas constantes é bem estruturada e tem poucas variações; e é precisamente a repetição que reforça a aptidão no que quer que elas se empenhem.
Mas por que nós, que só desejamos levar as nossas vidas da melhor forma possível, achamos que ser constante é tão difícil?
Eu chutaria que estamos sempre desejando ser constantes em coisas que não queremos de verdade. Meditando nisso e perguntando a opinião dos seguidores lá no Instagram, percebi que os termos “constância” e “disciplina” tendem a ser usados como sinônimos e, por causa disso, percebi que eu mesma não tinha claras as definições desses dois termos. Creio que a disciplina e a constância têm relação, de fato, mas que não são a mesma coisa. Cabe, então, tentar esclarecer os dois termos, já que essa falta de clareza pode ser uma fonte de confusão.
Constância e disciplina
Recorramos ao dicionário. As seguintes definições foram tiradas do Priberam online:
O Priberam faz notar que ambas as palavras vêm do latim. Vamos, então, ao dicionário latino:
Dessas definições, podemos tirar algo que se pode perceber intuitivamente:
Disciplina tem mais a ver com o aprendizado de algo. Implica, portanto, em obediência às regras, em mais rigidez, em maior adesão a um modelo ou a um método, pois estamos nos moldando numa forma já dada.
Daí a disciplina acadêmica, a disciplina militar ou a disciplina de quem faz artes marciais: o sujeito que entra nesses grupos tem de aderir a um método particular, a um modelo.
Constância tem mais a ver com perseverança, com insistência, com permanência.
É um tipo de fidelidade — o que não quer dizer, necessariamente, adesão total às regras ou ao método, mas sim clareza de propósito, uma disposição de espírito que se mantém, ainda que as ações nas quais essa disposição se manifesta sejam variáveis.
A disciplina é, de fato, muito útil para quando queremos implementar um novo hábito. Porém, é insuficiente, pois traz muita rigidez.
Para agirmos com constância, precisamos primeiro de um eixo, um propósito central, e não apenas de um modelo (e creio que é aqui que a gente costuma errar!). É a partir deste eixo, e sempre com ele em vista, que decidiremos como agir de acordo com o que se apresenta diante de nós.
Em suma:
Na disciplina, as ações do indivíduo se moldam a um modelo externo. Na constância, as ações do indivíduo partem de um modelo interno.
A disciplina parte de fora para dentro; a constância, de dentro para fora.
De pouquinho em pouquinho, construímos catedrais
A citação do autor Orhan Pamuk vem bem a calhar. Durante este último ano e pouco, percebi que há dois pequenos detalhes que, apesar de pequenos, fazem toda a diferença na manutenção de uma rotina constante. São eles:
- Ser constante não é dar 100% de si o tempo todo; na verdade, a constância está em fazer de acordo com as nossas possibilidades, um pouco a cada dia.
Por exemplo: se me proponho a ir à academia todos os dias da semana, 2 horas por dia, quando treinar for mais difícil porque não dormi bem na noite anterior; porque tive de trabalhar mais para entregar alguma coisa; porque tive uma emergência em casa; porque fiquei doente, etc., o meu rendimento naturalmente vai cair — e isso provavelmente vai me desestimular. Não raro, é aí que, não conseguindo manter o compromisso inicial das duas horas de concentração e dedicação total, começamos a nos perguntar se não seria melhor voltar depois, “quando as coisas se acalmarem”. Quem nunca pensou assim e acabou abandonando o propósito?
No entanto, se o objetivo está em manter-se em movimento, não há nada de errado em flexibilizar os treinos da semana. Assim, se num dia só posso 20 minutos, é esse o tanto que farei, sabendo que é melhor fazer o que me é possível do que abandonar de vez o exercício.
A ideia é encarar cada dia como um novo dia — não só como uma forma de recomeço e reiteração do propósito, mas também como uma forma de atentar ao “processo”, ao ritmo da própria vida.
O segundo detalhe é o seguinte:
- Ser constante também não é não parar jamais: as pausas têm de ser levadas em conta como parte fundamental do processo.
Uma coisa pela qual eu estou pagando agora mesmo na forma de problemas de saúde e de estresse elevado, é a mentalidade de que é preciso dar conta de tudo o tempo todo, sem incluir aí o descanso e o lazer. Acontece que esse é um caminho certo para uma exaustão e um desgaste que vão além do mero aspecto físico.
A rotina precisa contar com momentos de recolhimento, de descanso, de relaxamento e de diversão; caso contrário, a gente simplesmente se esvai e fica imprestável. O pulo do gato é planejar de antemão tais momentos, tendo a clareza de que eles são parte fundamental de uma rotina produtiva e que, sem lazer, é muito difícil manter-se constante nos propósitos, porque a rotina “certinha” e rígida rapidamente perde o brilho quando não há momentos de respiro. E é nisso que pretendo me concentrar este ano.
A rotina constante não é uma prisão, nem nos engessa: ela deve estar alinhada com o caminho que trilhamos e em que queremos continuar e, por isso, deve se tornar cada vez mais natural para nós.
*
A constância leva à excelência. É precisamente por isso que temos que ter muito claras para nós mesmos quais são as nossas prioridades — quais são aquelas coisas nas quais devemos ser fiéis. Afinal de contas, ninguém quer ser constante em hábitos ruins, mas todos o somos, em alguma medida. Tentando buscar duas palavras para sintetizar o que desejo para ano que vem pela frente, decidi que, à “constância”, acrescentarei a “clareza” — precisamente para saber distinguir propósitos.
Espero que essa breve meditação te ajude, querido leitor, a eleger bem no que ser constante neste ano que se inicia; e que tenhamos boa disposição para encarar o que vier pela frente.
Feliz 2024!
Em tempo: Os melhores (e piores) de 2023
Cometi a mancada de não enviar por e-mail a última edição do nosso podcast sobre tradução literária, o Primeiro Parágrafo.
e eu fizemos uma retrospectiva (inteiramente subjetiva) do ano: falamos de nossas traduções, de leituras passadas e futuras, da fênix literária do ano, de newsletters interessantes e dos anglicismos que nos deram nos nervos em 2023. O podcast está disponível no Google podcasts, no Spotify, no Youtube (veja nosso brinde em vídeo!) e aqui mesmo, no seu tão querido Periódico:
Ep. 04 - Os melhores (e piores) do ano
Último Primeiro Parágrafo do ano — ou primeiro Primeiro Parágrafo do resto de nossas vidas! Onde tagarelamos sobre os melhores e piores de 2023: livros, newsletters, anglicismos… ferramentas de Word... y muchas cositas más. Pegue os fones de ouvido, a taça de prosecco, levante bem o dedo mindinho e aproveite! Feliz Ano Novo!