Primeira edição
O talento e a responsabilidade pelo talento; "O Caminho do Artista" e a origem da criatividade; notas pessoais | Periódico nº 1
Meses atrás, um sujeito me mandou mensagem dizendo que, por ler o que eu escrevia no Instagram, empenhou-se a escrever também. Começou com as páginas matinais e, dali a pouco, percebeu que estava escrevendo outros textos, contos, crônicas — coisa que sempre quisera fazer, mas na qual nunca tinha sido muito exitoso. Dizia-se feliz porque finalmente estava conseguindo fazê-lo, e me agradecia por ter escrito o que publiquei e por ter compartilhado um pouco das coisas que lhe serviram de inspiração.
Não era a primeira vez que isso me acontecia, nem foi a última; mas essa ocorrência específica me deixou pensativa. Sempre me alegra saber que alguém tenha encontrado inspiração para escrever em meus textos, naturalmente; mas também me surpreende esse fenômeno, porque na maior parte das vezes eu escrevo sem ter um público em mente, só para mim (embora eu tenha me desafiado um pouco nos últimos tempos, compartilhando às vezes algo que escrevi só para mim por achar que consegui exprimir algo de valor e, bem, por que não compartilhar?). Neste caso específico, o que me marcou foi que o rapaz — que tem se mostrado de um talento enorme para a escrita —, encontrou ali o empurrãozinho de que precisava para retornar ao que ele mesmo sabia que devia estar fazendo. Eu — e podia ter sido qualquer outra pessoa — escrevi meia dúzia de linhas sobre qualquer coisa, linhas que ele leu e, tendo-as lido, sentiu-se estimulado a fazer algo de bom com uma aptidão natural que já sabia ter.
O incentivo de que ele precisava era tão pouco! Sempre que lembro dessa mensagem, fico pensando: quantos talentos não são enterrados por nunca terem recebido uma atençãozinha de nada? Quantas boas obras não ficaram para depois e acabaram esquecidas em meio às cobranças da rotina? Quantos mais como esse rapaz não estarão por aí, confusos, meio perdidos, esperando apenas um sopro que lhes inspire um rumo?
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Não é porque as palavras me saem com certa facilidade que escrever me é fácil; não é — e só Deus sabe o quanto penei (e peno) ora tentando encaixar a minha vida numa rotina que me permitisse escrever e me frustrando, ora tentando esquecer da escrita, desistindo mesmo, largando de mão o que hoje julgo ser uma de minhas únicas habilidades evidentes; mas sempre que o fiz, vi minha vida se tornar amarga num piscar de olhos. Com o tempo, fui percebendo que esse era o preço por me afastar do que eu sabia que devia estar fazendo e não fazia.
Sei que não sou das maiores, mas sei também que sou competente o bastante no campo das letras e que tenho certa fluidez na escrita. Contudo, faz pouco tempo que dei-me conta de uma coisa que agora me parece evidente: por mais modesto que seja, o talento traz consigo a responsabilidade pelo talento.
Além da responsabilidade pelos frutos diretos do emprego do talento — um edifício, um tratamento, um livro — e da responsabilidade por esforçar-se para desenvolvê-lo e aprimorá-lo, creio que o sujeito de talento seja também responsável por partilhar de alguma forma o seu talento com os demais. Para que, afinal, serviria um talento que ficasse voltado para si, sempre fechado em si, e nunca fosse — ou nem ao menos tentasse ser — um ponto luminoso no mundo?
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No final do ano passado, fiz o programa de exercícios de desbloqueio criativo do livro “O Caminho do Artista”, de Julia Cameron. Uma das lições mais importantes que tirei do livro, e que mudou a minha perspectiva em relação ao modo com que eu encarava a questão do talento, é a de que, diferentemente do que pensamos, a criatividade não é algo que é nosso, mas sim algo que vem de Deus e do qual somos apenas um canal. O talento é uma ferramenta que nos permite manifestar essa criatividade, e é também um presente que nos foi dado para que dele fizéssemos uso.
The creative process is a process of surrender, not control.
Isso me tocou especialmente porque há meses vinha pensando recorrentemente na parábola dos talentos, e cheguei até a publicar umas linhas a respeito no Instagram:
E se o talento que eu julgo ter não existir?
E se eu tiver enfiado na minha cabeça que meu talento é muito mais profundo e denso do que realmente é?
E se eu me agarrar eternamente ao talento A, enquanto Deus queria mesmo é que eu me lançasse de peito aberto sobre o talento B?
E se for eu o servo de um talento só e, tomada pela ansiedade, me deixar paralisar?
E se eu me deixar levar pela marcha dos dias, o talento fincado na terra, e a sua vez só chegar quando se aproximar a minha hora?
Sendo enterrado — e não semeado —, não sufocará o pobre talento, na expectativa de ser salvo (e de salvar-me)?
E se eu não desenterrá-lo, não serei eu a sufocar?
Até ler “O Caminho do Artista”, eu julgava que a responsabilidade que temos pelos talentos que recebemos se resumiria à hora da Prestação de Contas. Mas a questão vai além: tem a ver com as possibilidades do aprofundamento da própria consciência, da ampliação do próprio campo de ação no mundo e, por fim, de como a nossa vida, as nossas ações e as nossas obras tocam outras vidas, geram outras ações e influenciam outras obras. Se Deus nos dá talentos para que os usemos, e se, quando os usamos adequadamente, nos fazemos ferramentas de Deus, que fala por eles, não lançar mão dos talentos que temos é decidir dizer não a um chamado — ao chamado de sermos nós mesmos, como pudermos e conseguirmos, e de realizar coisas que somente a configuração muito particular de elementos que nos compõem torna possíveis. É sentir lá no fundo que há algo com que podemos contribuir, e que temos a capacidade necessária para fazer, e ainda assim não fazer nada. Num dos capítulos do livro, uma citação de Tolstói me foi especialmente marcante:
Está em meu poder servir ou não servir a Deus. Servindo a Deus, contribuo para o meu próprio bem e para o bem de todo o mundo. Não servindo a Ele, falto para com o meu próprio bem e privo o mundo deste mesmo bem, cuja realização estava em meu poder.
Nada mais triste que algo verdadeiramente bom ser desperdiçado — especialmente por motivos mesquinhos ou vãos.
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O livro me impulsionava a fazer alguma coisa — mas o quê? Numa daquelas semanas, sem que eu procurasse com grande afinco, botei para tocar um álbum já ouvido e algo aconteceu. Senti-me tragada pelas músicas, a ponto de parar de prestar atenção na monotonia da tarefa de trabalho que estava executando. Resolvi investigar — e depois de algumas semanas ouvindo, reouvindo, tomando notas, tentando entender o que me chamara a atenção na obra, tinha o primeiro rascunho de um ensaio sobre três versões da música “Wild Is the Wind”, que viria a ser publicado na Revista Unamuno.
Essa publicação foi uma grande vitória pessoal, pois, apesar de dizer para mim mesma que eu não escrevia mais por falta de tempo (e de me convencer disso porque, em parte, é verdade), o que eu tinha era medo — medo de me expor, de escrever algo e soar ridículo e, assim, estragar a bela e intocada imagem que eu cultivava desse talento. Resolvi seguir o que me dizia a intuição; escrevi o ensaio, enviei-o para publicação e contive as minhas expectativas. A parte que mais me desafiava, e que era aquilo em que eu estava me concentrando naquele momento, era simplesmente dar os passos de escrever e submeter para publicação; se fosse publicado, ótimo; se não, tudo bem. Eu queria, sim, que outras pessoas o lessem, mas entendi que, naquele momento, me concentrar apenas no que estava ao meu alcance — ou seja, tentar comunicar o mais claramente possível o que me despertara o interesse naquelas obras — era o mais importante.
O ensaio foi aceito — e, para a minha alegria, muita gente o leu e relatou sentir-se tocado de alguma forma.
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Curiosamente, esqueci de mencionar nesse mesmo ensaio uma música que talvez tenha se tornado a minha preferida do álbum: Word on a Wing.
Nela, Bowie fala do quanto é difícil seguir aquilo que sabemos que devemos seguir:
Lord, I kneel and offer you
My word on a wing
And I'm trying hard to fit among
Your scheme of things
Confesso que demorei a entender os versos seguintes:
It's safer than a strange land
But I still care for myself
And I don't stand in my own light
O que ele queria dizer com “but I still care for myself”?
Num estalo, ocorreu-me: quando nos preocupamos conosco, cremos que somos mais importantes do que a nossa missão. Quem se preocupa demais consigo mesmo inevitavelmente se poupa; e quem se poupa dificilmente se deixa abandonar à Providência. Quem busca se doar inevitavelmente se consome — mas viver é, em grande parte, deixar-se consumir; resta-nos escolher se aceitamos nos consumir na construção daquilo de bom que nos é dado fazer ou no atrito com a mata fechada da realidade, que tentará nos engolir caso tentemos abrir a nossa via à força e contra o rumo pelo qual almeja o nosso coração.
Lord, Lord,
My prayer flies like a word on a wing
My prayer flies like a word on a wing
Does my prayer fit in with your scheme of things? —
Era precisamente isso que eu vinha me perguntando — e o entendi por causa de uma música do David Bowie. A vida não é curiosa?
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O que quero dizer é o seguinte: esta é a nossa vida. Esta é a única vida que temos e em que nos é dado o poder de decidir o que fazer, como a conduzir. Sabendo disso, por que não fazemos o que intuímos que temos de fazer, mesmo sem sabermos exatamente como? Por que nos apegamos tanto ao medo de parecermos ridículos, ignorando que todos parecem um pouco ridículos até pegar o jeito de qualquer coisa? Por que não confessamos a nós mesmos que esse medo é, ao menos em parte, desejo de controle precisamente do que foge ao nosso controle?
“O medo é mau conselheiro”, dizem; e é bem verdade. Por causa do medo, deixamos de ser quem queremos ser. Por causa do medo, não fazemos o bem que podemos fazer e que está ao nosso alcance. Se ao menos admitirmos para nós mesmos os nossos medos, talvez possamos enxergar com mais nitidez o que perdemos ao segui-los — e assim perceberemos que, em geral, o que perdemos é muito mais do que o que conservamos se nos deixarmos ser guiados por esses receios.
Esta newsletter nasce de um esforço de abertura às possibilidades que foram se delineando diante de mim. Meu objetivo com ela é modesto: me esmerar para comunicar certas impressões, porque percebi que, quando o faço com sinceridade, o efeito é positivo. Escrevo esta primeira edição como uma aposta de que estou no caminho certo — como uma forma de botar minhas ferramentas à disposição de uma obra maior que eu apenas vislumbro e ver onde é que isso vai dar.
Escrevo porque não posso deixar de escrever — e, se com umas linhas meio sem jeito, mas sinceras, eu puder dar o empurrãozinho que falta a umas poucas pessoas que, como o meu amigo do início deste texto, estiverem precisando de um incentivo, o meu trabalho estará feito.
Lord, Lord, my prayer flies like a word on a wing
My prayer flies like a word on a wing
Does my prayer fit in with your scheme of things?
Não sei bem o que estou fazendo, mas confio que devo seguir.