Devoção / Fragmentos
Não nos deixou o segredo de sua dedicação, nem de sua perseverante alegria; mas sua história será contada enquanto enquanto houver mentes e corações preenchidos pelo seu amor. | Periódico nº 11
Era o final dos anos 1990 e os carros anunciando comida ainda eram coisa comum nas cidades pequenas — frutas, picolés, queijos, ovos, produtos da colônia eram oferecidos por um megafone quase sempre estridente e desnecessariamente alto, quase sempre acoplado a uma Kombi ou a um Fusca. “É o carro do (nome do artigo) que está passando na sua rua!” era o mote. Minha avó era compradora razoavelmente assídua de vendedores ambulantes — a nossa casa era sempre cheia de mantas e de redes, de produtos da colônia e até de artefatos artísticos de gosto um tanto duvidoso; tudo porque ela não podia negar ajuda a alguém que estivesse trabalhando — e se, de quebra, pudesse dar-nos um agrado ou tornar a nossa vida um pouco mais cômoda ou confortável, tanto melhor.
Uma vez, um desses produtores locais passou pela nossa casa — na verdade, tenho a vaga lembrança de ouvir minha mãe contar a história, dizendo que este carro específico era parte de uma ação do governo do estado para incentivar o comércio local de frutos do mar. Seja qual for o contexto, o fato é que, certa manhã, o carro do peixe estacionou na praça perto de nossa casa (estou inventando local para efeito literário, mas é plausível que estivesse na praça — a praça e a igreja eram grandes centros sociais naquela época) e a vó, que talvez fosse a maior madrugadora da rua, dirigiu-se cedo à praça, ao carro, ao moço que vendia os peixes — e só posso imaginar a cara dele ao ver a jovem senhora dar-lhe as costas levando quilos e mais quilos do seu estoque de cação.
Quando acordamos, a vó estava radiante: tinha resolvido o problema das refeições de dias, que não raro não tinham muitas opções de carne, e nisso gastou muito pouco. Incrédula e alegre, insistia: “o cação estava muito barato!”
O que até ali representava para nós uma novidade virou o nosso arroz com feijão. Em todas as refeições, a jovem senhora dava um jeito de incluir o peixe no cardápio: era cação com arroz; cação com pirão d’água; cação com abóbora; cação à milanesa; cação com bolinho de arroz (feito a partir das sobras do arroz do outro dia); etc., etc., e assim foi por dias, semanas, meses inteiros (era o que me parecia), até ninguém mais aguentar aquele cheiro, aquele gosto, aquela aparência e o estoque de cação finalmente esgotar-se.
Apesar do excesso, minha avó operou ali um verdadeiro milagre: foi exitosa em alimentar tantas bocas, por tanto tempo, com tão pouco recurso. A insistência no mesmo alimento não era capricho seu, mas uma necessidade. E, como tudo nela, havia naquilo um profundo carinho, um profundo cuidado, uma profunda devoção.
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Às vezes, a jovem senhorinha subia na bicicleta e sumia por algumas horas. Não sei se ia à missa, se passeava na praia ou se simplesmente precisava espairecer um pouco. Fato é que, pulando da cama antes de toda a casa, aproveitava para dar suas voltinhas.
Isso geralmente acontecia nas manhãs de sábado. Perto da hora de levantarmos, pelas oito, ela chegava, não raro com a bicicleta cheia de sacolas, e as sacolas cheias de produtos da feira — além das frutas e verduras de costume, trazia mil tipos de biscoitos caseiros: biscoitos amanteigados; de nata; com goiabada; de chocolate; palitinhos de queijo; mais raramente, pãezinhos de mel; e, sempre, sacos inteiros de casadinhos, que faziam grande sucesso lá em casa (até hoje sonho com esses casadinhos).
E lá ia a vó despejar os biscoitos nos potes — possuía uma coleção de potes enormes, pintados à mão, que faziam conjunto e adornavam o balcão da cozinha, e nos quais sempre se podia obter um lanchinho fora de hora. Dando mais urgência à nossa fome (mesmo que nada disséssemos e mesmo se nem sequer estivéssemos mesmo famintos), ela vinha, nos abraçava e, perguntando como tínhamos dormido, se tivemos frio ou calor durante a noite, ia pondo a larga chaleira no fogo para passar-nos “um cafezinho novo”.
Assim era a vó: abandonava o que quer que estivesse fazendo para cuidar de nós — e nesse “nós” era capaz de incluir quem quer que lhe aparecesse dizendo precisar de qualquer coisa; um prato de comida, um dinheirinho, um agasalho para lhe barrar o frio.
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A sua caridade era, de fato, impressionante. Teve uma época em que, a cada quinze dias, a sala da nossa casa parecia um salão comunitário. Minha avó, dona da casa e de um coração imenso, abria as suas portas para abrigar mui informalmente os serviços de massoterapia do Seu Lucas — um homem enorme, de jeito interiorano, sempre de bermuda, chinelo de couro trançado, camisa de botões de manga curta, boné promocional branco, rosto liso de barba bem feita; o típico colono catarinense. Foi a primeira pessoa que vi usar os óculos amarrados ao pescoço, com aquela cordinha infame que impede que idosos de todo o mundo percam suas armações.
Gente de todo o bairro e imediações chegava-se lá em casa e instalava-se em nosso sofá à espera de sua vez sob as mãos hábeis de Seu Lucas. Como ele e minha avó se conheciam, não sei dizer; fato é que a jovem senhorinha conhecia mil pessoas, parecia ter amigos em todos os cantos da cidade, por todo lugar do estado, e ampliava seus contatos por onde quer que passasse mais que alguns minutos.
Ia dizendo que pessoas vinham de todos os cantos. Seu Lucas estendia a sua maca portátil no meio da sala, ia à sua Brasília bege e trazia mil apetrechos, cremes, óleos, e preenchia o cômodo com notas herbais. Não eram aromas delicados de chá, mas antes o odor acre de remédios caseiros ou garrafadas. As massagens eram muito apreciadas pelas senhoras encurvadas e doloridas da região. (Olhando em retrospecto, talvez fossem o único luxo a que aquelas senhoras tivessem acesso fácil, dado que o bairro abrigava famílias nas quais a fartura se dava apenas em número de filhos e netos e o dinheiro era sempre troco contado.)
Além das massagens, Seu Lucas oferecia outro serviço: o espetáculo das limpezas de ouvido. Seu método, contudo, não era nada ortodoxo: nada de gotinhas discretas e solventes a descer pelas orelhas das senhoras; não: — metia-lhes cones de papel alvíssimo, em cuja extremidade externa ateava fogo. Às vezes, as labaredas punham medo nos presentes; mas o homem era habilidoso com as chamas e domava-as logo, com grande destreza. Parecia um mágico no controle pleno de um espetáculo ígneo. Depois de alguns minutos de agonia de quem se submetia ao processo, Seu Lucas retirava-lhe o cone, apagava a brasa e, como quem revela um segredo, abria a folha de papel, orgulhoso em demonstrar o poder de seu truque. Os empreendedores de hoje penam para conseguir a chamada “prova social”, a aprovação de produtos e serviços — pois Seu Lucas a tinha bem ali, instantaneamente, quando, no ato da abertura do cone utilizado, a sala inteira manifestava grande espanto e o cliente da vez só faltava lacrimejar de emoção pelo canal desimpedido.
Até onde tenho notícia, Seu Lucas não pagava nada a minha avó para operar seus negócios em nossa sala. Se bem a conheço, arrisco dizer que ela lhe concedia o espaço simplesmente por ver-se compadecida: pois ele não podia atender na rua e, se não atendesse, não poria comida no prato da família.
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Naturalmente, o meu imaginário infantil foi em grande parte construído por experiências proporcionadas pela minha avó. Eu devia ter uns três ou quatro anos quando ela me levou às celebrações da semana da Páscoa na paróquia local. Lembro do pátio da igreja, que parecia enorme; da entrada da igreja, apinhada de senhoras, idosos, mulheres com crianças de colo e crianças no chão, agarradas às mãos dos pais; da multidão de galhos que se chocavam uns contra os outros no Domingo de Ramos e no mar de chamas das velas que emprestavam a tudo um tom alaranjado misterioso na vigília pascal. Como muitas crianças, eu tinha medo do escuro — mas ali não tinha medo. Aquela penumbra, acompanhada dos momentos de silêncio e de repetições coletivas, em que mil bocas proclamavam as mesmas palavras, monótonas, sincronizadas, infundiu-me um senso profundo de reverência. Não entendia o que as pessoas diziam, mas lembro de ver, encantada, a minha vó repetindo as orações, os cantos, os responsórios e de me perguntar como ela sabia o que dizer, e na hora certa.
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Um dia, despertei muito mais cedo do que de costume. Levantei-me e dirigi-me à cozinha, um pouco desnorteada. A mesa posta denunciava que alguém acabara de tomar o desjejum, mas não havia ninguém no cômodo. A TV estava ligada; começava o Bom Dia, Brasil. O dia ainda despontava. A porta lateral estava escancarada; saí ao quintal, procurando quem quer que estivesse em casa, temendo estar sozinha.
Os varais estavam cheios de lençóis que se balançavam, animados pelo toque suave da brisa matinal. Seguindo o labirinto de roupas limpas, finalmente avistei-a. Diligentemente, estendia roupas lavadas e torcidas à mão, e um enorme sol alaranjado, perfeitamente redondo, surgia atrás dela e tingia de cores quentes o céu azul.
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Minha avó não vinha de uma família rica, muito pelo contrário: a mais velha de cinco irmãos, minha avó contava do dia em que seu pai abandonara a esposa e as crianças, sendo minha vó uma menina de cinco anos e o mais novo, um bebê de colo. Sozinha, minha bisavó — um exemplo de fortaleza — juntou o pouco dinheiro que tinha e, comprando um cavalo e uma carroça, pôs-se a fazer serviços de frete pela cidade. Quando minha avó tinha cerca de 14 anos, foi morar com uma tia que, recém-casada, precisava de ajuda em casa. Pelos 18, conheceu o meu avô, um marinheiro charmoso e elegante, vinte e tantos anos mais velho. Casaram-se e tiveram seis filhos.
Quando minha mãe, a filha mais velha do casal, tinha 16, meu avô sofreu um AVC que o deixou acamado por anos a fio. Minha avó cuidou dele o tempo todo, até o fim. Alguns anos depois da viuvez, tornou-se avó — e cuidou de mim, bem como dos netos que vieram mais tarde, com a mesma dedicação e disposição amorosa. Casou-se uma segunda vez, e novamente enviuvou; por fim, mudou-se para a casa de sua mãe, onde permaneceu cuidando de minha bisavó e de minha prima. Até que…
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Faleceu numa madrugada de dezembro de 2015, perto do Natal. Minha mãe me ligou por volta da uma da manhã e pressenti o teor da notícia antes mesmo de atender — só não esperava que fosse a vó, que ainda era tão jovem, tão vivaz, tão disposta. Na quinta-feira daquela mesma semana tinha ido ao médico, que lhe recomendou novos exames e mais cuidado consigo, pois sua saúde não ia bem.
Tomei o ônibus mais vagaroso da minha vida madrugada adentro, rumo à outra ponta do estado, querendo correr, chegar logo, crente e rezando que aquilo fosse uma peça que me pregaram. Não era — um infarto fulminante a levara.
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Dentre os seus pertences, estava uma agenda telefônica, na qual era impossível encontrar os telefones segundo as iniciais porque ela os anotava na primeira página que abrisse, bem do jeitinho meio avoado dela. No meio dos telefones havia também receitas, rabiscos e notas esparsas, dentre as quais duas chamavam a atenção.
A primeira começava com algo como: “Nasci em Imbituba, Santa Catarina…” e logo se interrompia. Minha avó sempre disse, com certa razão, que sua história daria um livro e tanto. Em um delírio enlutado, de maneira mais ou menos consciente, tomei para mim a tarefa de escrevê-lo.
A segunda nota, no entanto, me atingiu como um dardo: era uma relação de indícios sob o título “Sintomas de ataque cardíaco em mulheres”. Minha avó sabia que havia algo de errado consigo, coisa que a médica confirmara poucos dias antes do momento derradeiro. Num gesto apropriadamente simbólico de Deus, a vó, que atravessou a vida doando-se aos outros, morreu de coração dilatado.
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Com a sua morte, algo se estilhaçou dentro de mim — algo que me era mais valioso do que eu suspeitava. Desde então, passei os anos olhando para trás, inventariando o que restou, reunindo cacos, numa tentativa vã de reconstruir… algo.
Mas não posso mais. Percebendo e admitindo que talvez jamais escreva o romance que ela queria, resolvi ao menos escrever esta edição do Periódico em sua homenagem. Em vez de permanecer a contemplar os cacos, usarei esses fragmentos para ladrilhar o caminho adiante. Um dia, na hora adequada, a reencontrarei em meio aos lençóis bailantes de outro plano e sairemos juntas a pedalar bicicletas celestes, se Deus quiser.

Ana! Que lindo. Você só me fortaleceu a vontade de escrever sobre minha saudosa e amada vó. Uma única vez, no decurso das páginas matinas, escrevi dela; mas fui interrompido por uma explosão de choro: chorei, chorei e chorei. Não chorei por sua ida; pois para mim ela vive. Chorei por tudo que só ela soube ser e fazer para mim.
Que lindo texto Juh! Estou aqui extasiado com a tua maestria em descrever esses fatos e de vê-los sob o teu prisma. Obrigado querida, Te Amo😘😘😘