Da Sugestão do Pecado
Notas sobre “A Vida Como Ela é…”, de Nelson Rodrigues | Periódico nº 30
Bem me lembro: comprei A Vida Como Ela É…, de Nelson Rodrigues, num sebo, em 2012, pouco depois de o livro ter ganhado nova edição pela Editora Nova Fronteira; o exemplar estava metido numa pilha de recém-chegados, ainda sem catálogo. À época, eu vinha lendo muito de Nelson e, apesar da empolgação inicial com estes seus contos, acabei nunca encontrando (ou criando) o momento adequado para lê-los.
Meses atrás, em viagem à casa e vontade de reencontro, decidi recuperá-lo do esquecimento na estante, pois sentia uma saudade densa e profunda do Brasil — sobretudo, daquele Brasil que só se encontra em Nelson. (Como defini-lo? Um Brasil ordinário, mas bonitinho, talvez?)
O que eu buscava, no fundo, era a descrição de um Brasil que, apesar dos pesares, apesar das misérias, era visto com olhos amorosos — traço compassivo que, ao que me parece, esvai-se gradualmente do caráter brasileiro (eis aí um tema para reflexão e, quiçá, para outro Periódico). O que eu não esperava, contudo, era que Nelson me surpreendesse mais uma vez com a sua maestria, levando-me a descobrir novas facetas da sua escrita e renovando a percepção de que o autor permanece sendo um dos melhores observadores do Brasil.
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A Vida Como Ela É… foi o nome dado a uma coluna diária que Nelson passou a publicar no jornal Última Hora em 1950. Enquanto eu ia avançando na leitura dos contos, lembrava de outros escritos em que o próprio autor se define como “uma flor de obsessão”: nesta, como em outras de suas obras, Nelson escreve rigorosamente sobre os mesmos temas, apresenta cenários quase sempre muito semelhantes, personagens cujos traços dificilmente fogem à mesma dúzia de características e de dramas pessoais, obsessões, desejos, problemas.
Lendo isto, o leitor poderá achar que este é um ponto fraco; no entanto, a mim me parece que esta repetição é uma das maiores forças da literatura de Nelson: é como se ele buscasse examinar certos comportamentos recorrentes, certos “pecados de estimação” de tipos brasileiros e os analisasse por diversos ângulos diferentes. Emprego aqui o termo “pecado” de um jeito bem rodriguiano: abrangendo desde o sentido estrito, religioso, cristão, católico até um sentido nem tão estrito assim, vai — uma mera falta, nada grave, também.
Durante a leitura de A Vida Como Ela É…, também percebi uma coisa que, lá em 2012, quando vinha lendo uma porção considerável de suas publicações — teatro, crônicas e até o que ele escreveu sob o pseudônimo Suzana Flag —, não me havia dado conta (por imaturidade; daí o valor de retomar leituras e autores — outro assunto para outro Periódico…): Nelson mostra que a transgressão de determinadas regras invioláveis é, no mais das vezes, questão apenas de familiarização. Para uma enormidade de personagens seus (e eu ia dizendo para todos os seus personagens), a mera sugestão do pecado basta — um amigo que telefona e faz uma proposta indevida; uma irmã que confidencia um segredo escandaloso; um pensamento que normalmente seria absurdo, mas que pega o personagem de guarda baixa — para que a questão, cruzando os limites do aceitável, torne-se alimento para a imaginação, e daí para a ação. No mundo tão brasileiro de Nelson, uma determinada regra é um princípio inviolável, mas, com jeitinho, a sua violação se adequa perfeitamente à vida do sujeito, que pode adotar o novo comportamento como maneira de chutar o balde e cair na pândega de vez ou, de maneira mais tímida, mais velada, de levar uma espécie de vida dupla — e é justamente revezando esses mesmos pecados entre os seus tipos repetidos que Nelson mostra que, no fundo, somos todos humanos — e que a nossa ideia bem brasileira (e bem humana) de que “se fosse eu, seria diferente” nem sempre corresponde à realidade.
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Outra característica que enxerguei com novos olhos foi a clara percepção de como Nelson é ligeiro em pintar o cenário e os personagens. Isto, sem dúvida, dava-se pelo próprio meio em que esses contos foram publicados originalmente — no jornal, o limite de caracteres era em parte ditado pela diagramação, e o espaço de folha era literalmente valioso; portanto, era preciso escolher muito bem as palavras. (Peguei-me pensando, durante a leitura, que eu mesma — e, por tabela, o leitor — encontraria grande benefício em escrever com este tipo de restrição.) Em regra, pulamos direto para a ação: o momento decisivo, o momento da sugestão do pecado, ou acabou de acontecer ou está prestes a acontecer, e o que leremos em seguida é o seu desdobramento — como as vidas tocadas por aquela sugestão cairão numa espiral descendente, miserável, e não raro fatal.




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Saí da leitura amando ainda mais a escrita de Nelson e admirando ainda mais a envergadura de sua obra. Sendo um dos mais agudos observadores do jeito brasileiro de levar a vida, é impossível sairmos da leitura de suas obras sem nos reconhecermos nas falhas de seus personagens. Ao expor essas falhas, Nelson nos faz desejar estender um olhar mais amável e mais caridoso aos nossos patrícios e ao nosso país.
Recomendação:
Filme: Toda Nudez Será Castigada (1973), de Arnaldo Jabor. O filme é de uma esculhambação que só, como o poderá imaginar quem já leu a peça de que o roteiro foi adaptado — porém, quando percebemos que não há o que fazer a não ser acompanhar a história absurda sem julgamentos, encontramos uma profunda humanidade naqueles personagens, e até achamos graça.
Do Letterboxd (segue-me lá, leitor cinéfilo), tiro esta citação feita por Lucas Nascimento:
“José Lino Grünewald: Então, Toda Nudez Será Castigada é o melhor?
Nelson Rodrigues: Sim, porque Toda Nudez, ao contrário do que pensa o Jabor, é um filme que tem todos os meus defeitos. Já o mais grave defeito do Jabor é a admiração dele pelo Godard. Jabor crescerá de maneira fantástica quando brigar com todas suas atuais amizades. O Jabor só não é muito maior porque não é reacionário, mas, um dia, ele o será e nós assistiremos à explosão de seu gênio.” (Entrevista de Nelson Rodrigues para a revista Filme e Cultura, ed. 24)
Em tempo: este breve comentário de Jabor sobre esta peça que adaptou ao cinema e sobre a visão artística de Nelson também é bastante interessante: Arnaldo Jabor - Toda Nudez Será Castigada - Ocupação Nelson Rodrigues (2012).
Até a próxima edição!
Um grande abraço,
— Ana