Abraçando a frustração
Ou: Correr é uma desgraça; não vejo a hora de ir de novo | Periódico nº 26
Surpreendentemente (para mim mesma, que tinha até certo orgulho em mal me mexer e estar “em forma” e “saudável”), entrei sem querer para o grupo de pessoas que abraçou os exercícios durante a pandemia. Pelo início de 2020, compramos dois kettlebells e comecei a seguir uns programas de exercícios em casa, originalmente para tentar remediar uma dor nas costas que ia se tornando crônica, sem saber da diferença entre treinos de força e de resistência, do impacto que a dieta tem na disposição do sujeito, etc. — para mim, se eu me mexesse um pouquinho, já estava de bom tamanho. No ano passado, querendo aproveitar um pouco mais os dias de sol e temperatura amena, comecei a correr — mas, por ter aquele fôlego que só se conquista com uma vida dedicada ao sedentarismo, minhas investidas não foram muito longe (literalmente, aliás — não conseguia correr mais que dois minutos seguidos, em corrida razoavelmente leve). Pesava a falta de técnica e, sobretudo, de objetivo. “Ficar mais saudável” não é um objetivo concreto, e sim uma meta abstrata, conforme fui compreendendo. Era preciso um caminho prático, com objetivos de curto prazo e de médio prazo, para que fosse possível chegar naquela meta.
Pois bem. Por motivos de saúde, pus nas metas de Ano Novo que em 2024 me dedicaria mais aos exercícios físicos. Minha intenção era ter mais disposição, mais vigor, um fôlego melhor. Sabia que não conseguiria fazê-lo sozinha, de modo que fui inculcando na cabeça do meu marido que seria muito bom para ele começar a correr também. (Falando assim, parece parte de um plano maquiavélico, mas eu realmente acreditava que a corrida lhe faria muito bem se ele ao menos desse uma chance à coisa toda, o que se provou mais do que certo nas últimas semanas. Eu falei que ia dar certo, etc.). Depois de relutar por algumas semanas, ele se convenceu, e em janeiro deste ano começamos a correr juntos, três vezes por semana.
*
Quando corro, começo a pensar nas mais diversas frustrações que tenho e nas quantas boas formas estou transgredindo com meus movimentos ainda tão desajeitados, tão amadores no esporte. É como se dentro da minha cabeça houvesse um daqueles “amigos que só querem o meu bem” (se é que o leitor me entende) que não perdem a chance de apontar cada coisinha que estou fazendo errado, da forma de aterrissar os pés à forma como conduzo a minha vida.
Dia desses, tendo muito ouvido esse crítico feroz enquanto seguia pondo um pé na frente do outro, terminei a corrida do dia imensamente frustrada; lágrimas de raiva e tristeza e de um emaranhado emocional me queriam rolar pelo rosto. Passado um minuto de silêncio, recobrei o fôlego e, com voz pesarosa, comentei da imensa frustração que sentia com meu marido e perguntei-lhe se ele também era atacado pelas próprias críticas enquanto corria. Com muita naturalidade, respondeu ele:
— Não. Para mim, é como uma meditação. Não penso em nada. Quando estou correndo, eu só corro.
*
Desde então, tenho tentado pensar em nada durante as corridas. Várias coisas ruins me vêm à cabeça, as críticas surgem e adornam meu humor como ressaca na praia. Venho tentando, contudo, não me ater a esses pensamentos, desviando o foco para coisas mais positivas: para a minha respiração, que parece estar melhorando; para o fato de que já encontrei o meu ritmo e que minha corrida já está bem mais natural que antes; que a primavera está quase aí e que este ano, por estar correndo desde o inverno, tenho percebido mais claramente como pode ser gradual a mudança das estações; quando, por qualquer motivo, acabo me aproximando do meu marido — que é muitíssimo mais rápido e mais resistente que eu, que vai longe na frente e que de vez em quando vejo voltar correndo para ter certeza de que o estou seguindo, de que estou bem e que não me perdi — e fico feliz sabendo que ele tem se adaptado bem ao exercício e que tem tido melhoras significativas no humor e na disposição por causa das nossas corridas. Isso me reanima. Às vezes, quando depois de um tiro os músculos parecem ter atingido o seu limite, lembro que corredores costumam acenar para outros corredores quando estes não fazem cara de sofrimento, e tento sorrir para os colegas corredores que vêm na minha direção —e, de fato, corredores e transeuntes, quase todos me sorriem de volta.
Toda corrida, por mais leve que seja, é um encontro com meus limites, físicos e emocionais (e eu diria que estes últimos são os que, como se diz no jargão do esporte, “quebram” primeiro). Aos pouquinhos, vou aprendendo na marra que aceitar a frustração é parte fundamental do processo.
*
Encontrar nossos próprios limites e nos esforçarmos para ampliá-los pode ser tão bom! Principalmente quando levamos este mesmo princípio para os demais âmbitos da vida. Abraçar a frustração sabendo que, por um lado, é impossível ser bom em tudo, mas que, por outro lado, há uma vastidão de possibilidades de aperfeiçoamento — eis aí algo em que vale a pena se empenhar.
*
Retomo as publicação do Periódico com este modesto relato, assim mesmo, como quem não quer nada — como quem não deixou a newsletter um pouco de lado nestes dois últimos meses. Tive bons motivos para fazê-lo — obrigações pessoais me tomaram os pensamentos, a saúde deu uma cambaleada e, quando vi, mais uma quinzena passava sem que eu conseguisse me dedicar a escrever novas edições. Mas cá estamos, sem arrefecer e sem desistir (e, aliás, com planos de expansão; mas mais a esse respeito nas próximas edições!).
Recomendações:
Os exercícios com kettlebell ainda são os meus preferidos. É estranhamente cativante a concentração que devemos ter enquanto elevamos um peso livre bem acima da cabeça (talvez aí esteja o meu “só correr, sem pensar em nada”). O primeiro programa de exercícios que segui, e o de que mais gostei, foi um do Pavel Tsatsouline (fundador da Strong First). Alguém colocou no Youtube um dos seus programas e eu recomendo vivamente que o leitor dê uma olhada no vídeo — se não para segui-lo, apenas pela experiência estética peculiar do negócio, hah.
Se o leitor tiver interesse em corrida, vale muito a pena dar uma olhada nos vídeos da Raquel Castanharo. Fisioterapeuta, mestre em biomecânica e ela mesma adepta da corrida, a Raquel faz vídeos muito esclarecedores sobre corrida e desfez muitos mitos e preocupações que tínhamos antes de começarmos a correr. (E, além do mais, ela é de uma simpatia ímpar!)
Por fim
(e nada que ver com o assunto desta edição):
O que é este “desconcerto”, este vazio presente em todos nós? O que é arte e por que fazer arte? Qual é a distinção entre arte e técnica? Chamei o diretor de teatro, músico, filmmaker, artista polivalente e grande amigo Jefferson Bittencourt para explorar essas e outras questões a partir da leitura de O Desconcerto do Mundo, de Gustavo Corção (que foi um livro recomendado pelo próprio Jeff, literalmente, dez anos atrás, e que só li agora). A conversa está imperdível e pode ser assistida no Entremeios:
Aproveitem para curtir o vídeo e inscrevam-se no canal!
Também comecei a correr depois de adiar essa meta por anos. Gostaria de ser como o seu marido e esvaziar a mente, não pensar em nada... mas ainda não consigo. Eu chego lá! Seguimos, um passo depois do outro, tentando encontrar nossos próprios limites e nos esforçando para ampliá-los. :)
Oi Ana, entre tantos meios de interesse, a minha formação é em educação física, embora seja quase uma via contrária de tudo que consumo, lembro do que Platão dizia sobre a ginástica (esportes) e a música que acrescentam a alma com força e delicadeza, e são imprescindíveis para o ser humano. Digo-lhe que é uma escolha certa: a prática esportiva (seja ele qual for).
Incentivo você a continuar, isso tudo faz parte de uma construção equilibrada da vida intelectual, emocional e física, e mesmo que tenha dificuldades, com o tempo a gente vai colocando Ordem na coisa. Obrigado por esse relato maravilhoso! Abraços!