Desde a adolescência, quando passei a frequentar regularmente o Cineclube do SESC da minha cidade, comecei a me interessar verdadeiramente pelos filmes, por como eram feitos, pelo que podiam dizer e como o diziam; e, dali a poucos anos, quando na faculdade de Cinema, passei a adotar com os filmes a mesma postura que tinha em relação à música e à literatura: queria conhecer os cânones, os diretores mais influentes e as influências destes mesmos diretores; e, sendo o cinema uma arte ainda tão nova — os primeiros registros de projeções públicas de imagens em movimento (e não apenas fotogramas que criavam a ilusão do movimento) datam de 1895(!), com os irmãos Lumière, na França —, fiquei fascinada com a ideia de ir aos primórdios desta arte e de mergulhar na filmografia de diretores de que gostasse, como forma de compreender o todo e de desenvolver o gosto.
Com o tempo, fui encontrando preferidos: nos primeiros anos da faculdade, vi muita coisa de Orson Welles e de Buñuel e queria muito gostar do Godard. Mais ao fim do curso, percebi que meu gosto se inclinava mais às narrativas mais convencionais, claras e ligeiras, e apaixonei-me pela filmografia de Frank Capra. De lá para cá, assisti a muita coisa diversa: passei a gostar dos musicais e dos noir; abandonei minhas ressalvas quanto às comédias e às animações e, mais recentemente, despojei-me da minha indisposição com os filmes de terror (embora ainda odeie levar sustos), muito graças ao meu marido, cujo conhecimento de cinema é muito mais amplo que o meu e com quem vejo muitos filmes e tenho conversas muitíssimo interessantes sobre as artes e a vida.
Sabendo de minha estima pelo cinema, vira e mexe amigos me pedem recomendações de filmes. Esta edição é uma forma de resolver várias pendências minhas do ano passado: a da falta que tenho com os amigos que me pediram recomendações nos últimos meses; a de retomar o Periódico depois de um breve hiato, e de retomar também o seu caráter de caderno de cultura personalíssimo, por assim dizer — porque tudo o que recomendo aqui, nesta e em outras edições, segue o critério do gosto e do interesse pessoais (confiando que esses irão ao encontro dos do leitor, mesmo que apenas de maneira periférica); e, por fim, a de insistir no cinema como forma de arte, a despeito da disposição contrária que vejo surgir aqui e ali e que me entristece, pois é evidentemente fruto do desconhecimento dessa arte.
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A Lista:
Os títulos não estão em ordem de preferência. Sinta-se à vontade o leitor para explorá-la e decidir pelo que mais lhe parecer interessante.
1. Os Boas Vidas (I Vitelloni) (Federico Fellini, 1953)
Cinco amigos festejam os anos finais de sua juventude enquanto sonham com grandes vidas — e, sem que se dêem conta, a vida adulta se impõe. Um belíssimo — e um tanto doloroso — retrato daquele momento em que nos damos conta que, puxa, aquele modo de levar as coisas já não dá conta de nos levar adiante.
2. Aquele Que Sabe Viver (Il Sorpasso) (Dino Risi, 1962)
Um estudante e um “boa-vida” encontram-se meio ao acaso e, de maneira impulsiva, partem juntos numa viagem de carro, durante a qual tornam-se amigos. No caminho, encontram de tudo — drama, tragédia e muito deboche, como não poderia faltar num filme italiano. Lembro em especial de um diálogo que muito me fez rir:
— Você assistiu a “L’Eclisse”?
— Sim.
— Eu dormi. Tirei uma boa soneca. Grande diretor, o Antonioni!
3. PlayTime (Jacques Tati, 1967)
Uma comédia de humor leve e faceiro, este filme é, sobretudo, uma experiência visual — é, para mim, o retrato de como a ânsia por otimização e organização de processos e a própria vida urbana nos levam a situações completamente absurdas. É um filme muito divertido, principalmente se visto em duas ou mais pessoas.
4. Céu e Inferno (High and Low) (Akira Kurosawa, 1963)
Uma história de ambição e de inveja. Um empresário está prestes a investir uma quantia enorme na sua fábrica de calçados quando o filho de seu motorista é sequestrado e o empresário tem de decidir que caminho tomar. A situação vai se enrolar, e muito. Um filme bastante diferente dos demais do célebre diretor, e que muito me agradou pela sua história poderosa (como não poderia deixar de ser, em se tratando de Kurosawa) e pela sua estética muitíssimo elegante.
5. Tormento (Yearning) (Mikio Naruse, 1964)
Após a guerra, a enviuvada Reiko reconstrói e toca o pequeno armazém da família de seu esposo — negócio este que será ameaçado pelas ondas de mudança do Japão no pós-guerra. Este filme é o retrato de uma vida de devoção — e de uma tristeza oculta. Os mais comovidos que preparem os lencinhos (eu mesma chorei).
6. O Comboio do Medo (Sorcerer) (William Friedkin, 1977)
Quatro homens que não se conhecem partem numa expedição peculiar: em troca de dinheiro, precisam transportar de explosivos a uma enorme distância no meio da selva fechada. Que agonia, meus amigos!
7. Rocco e Seus Irmãos (Rocco e i suoi fratelli) (Luchino Visconti, 1960)
Como podem irmãos nascidos e criados numa mesma família terem destinos tão distintos? Neste maravilhoso filme de Visconti, acompanhamos a bela e trágica história de uma família de cinco irmãos, cujos destinos são alterados no momento em que eles mudam-se de uma cidade pequena e pobre para Milão. Um clássico.
8. Uma História Real (The Straight Story) (David Lynch, 1999)
Uma história muito comovente de um senhorzinho que, diante da notícia da enfermidade do irmão, com quem brigara muitos anos antes, dá o seu jeito para cruzar estados inteiros para vê-lo. Nunca pensei que diria isso, mas me emocionou muito este filme do David Lynch. (E é baseado numa história real… novamente, preparem o lencinho!)
9. O Círculo Vermelho (Le Cercle Rouge) (Jean-Pierre Melville, 1970)
Alain Delon interpreta um bandidinho da mais alta patente — o filme começa em seu último dia na prisão; logo ao sair, o elemento encontra ao acaso com um foragido e, unindo-se a ele e a um ex-policial alcoólatra especialista em balística, vai cometer mais um delito. Uma história bastante simples, mas com uma direção tão acertada! Uma das coisas que mais me impressionou foi o uso muito elegante do som e do silêncio. Melville o faz muito bem também em O Samurai, outro excelente filme seu (também com um Alain Delon à margem da lei…).
10. No Tempo Das Diligências (Stagecoach) (John Ford, 1939)
Por força do destino, um pessoas completamente diferentes (de walks of life distintos) precisam passar por uns maus bocados juntas. À medida que as situações vão se apresentando a elas, vamos conhecendo o que cada um leva no coração, muito além das meras aparências. Uma jóia de filme e um clássico do cinema.
11. O Intendente Sansho (Sansho The Bailliff) (Kenji Mizoguchi, 1954)
A história se passa no Japão medieval. O pai, um governante local, é separado dos filhos por conta de agitações políticas; a mãe e dois filhos pequenos nunca mais recebem notícias dele; cousas acontecem e também a mãe e os filhos são separados. Os pequenos crescem como escravos, mas, já crescidos, vão atrás da mãe. Uma história de partir o coração.
12. Os Corruptos (The Big Heat) (Fritz Lang, 1953)
Depois que um policial conhecido seu é morto de maneira misteriosa, o detetive Dave toma para si a tarefa de investigar o que é que está acontecendo — e assim, naturalmente, torna-se um alvo vivo dos que operam nas sombras. Um noir seco, cruel e maravilhoso.
13. Cyrano (Cyrano de Bergerac) (Jean-Paul Rappeneau, 1990)
Cyrano de Bergerac é um homem de muita bravura e com grande talento para as armas (é soldado) e para as letras (é poeta), mas malsucedido nas finanças e no amor — a este último, atribui o seu insucesso à sua característica mais prontamente evidente: o enorme nariz, que é sua tristeza e seu constrangimento. O filme é tido como uma das melhores (talvez a melhor) adaptação da peça de Edmond Rostand que, por sua vez, é baseada na história de um escritor real, Cyrano de Bergerac. O texto complexo simplesmente flui da boca dos atores. Uma beleza.
14. Uma Vida Difícil (Una Vita Difficile) (Dino Risi, 1961)
Até onde vamos por aquilo em que acreditamos? Perderíamos tudo — tudo — para continuar seguindo as nossas ideias? Uma história sobre um sujeito que vai, aos poucos, perdendo tudo, inclusive a si mesmo, por supostamente seguir firme em suas ideias (mas, no fundo, também para não dar o braço a torcer). Cômico e trágico (não raro ao mesmo tempo).
15. Audazes e Malditos (Sergent Rutledge) (John Ford, 1960)
Um respeitado e leal oficial de cavalaria é visto saindo da cena do crime e é logo levado ao tribunal militar. A opinião pública está convencida de que ele só pode ser o culpado. Mas os motivos da crença vão se revelando à medida que os fatos vão vindo à tona. Mais uma vez, John Ford trata com grande maestria de temas delicadíssimos na sociedade americana ainda nos dias de hoje.
16. A Outra Face da Violência (Rolling Thunder) (John Flynn,1977)
Como poderá retomar a vida normal um sujeito que fora capturado e mantido por anos como prisioneiro na Guerra do Vietnã? Voltando para casa, Major Rane encontra um novo mundo; e, ainda sem saber qual é o seu lugar nele, tem-no drasticamente alterado novamente — desta vez, porém, ele desejará vingança. Violentíssimo, aviso desde já, mas um baita filme.
17. O Homem Que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much) (Alfred Hitchcock, 1956)
Um casal e seu filho estão de férias no Marrocos quando uma figura estranha cruza o seu caminho e as coisas começam a desandar. Hitchcock é mestre em transformar mistério e investigação em belíssimo entretenimento. Porém, aviso: será difícil tirar Que Sera, Sera da cabeça!
18. Divórcio à Italiana (Divorzio all’italiana) (Pietro Germi, 1961)
Marcello Mastroianni interpreta Ferdinando (ou “Fefe”, como tanto é chamado ao longo do filme), um nobre decadente que apaixona-se pela prima jovenzinha. Como é um desocupado, fica matutando planos mirabolantes para livrar-se da esposa, dado que o divórcio era ilegal. Um filme ridículo de cômico (e cruel — coitada da Rosalia!).
19. Rebecca, A Mulher Inesquecível (Rebecca) (Alfred Hitchcock, 1940)
Mais um Hitchcock para a lista — desta vez, contando a história de uma mulher recém-casada que muda-se para a casa do esposo, onde todos ainda vivem como se na presença da falecida. Seguem-se drama, mistério, suspense e tragédia.
20. O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985)
Um retrato poético de um mundo e uma realidade que vão, aos poucos, se esvaindo no tempo. Um filme meditativo, contemplativo, sobre uma Portugal que se encontra no silêncio e no rumor da vida simples — e que terá de se encontrar no movimento mais rápido e mais ruidoso que vem vindo.
21. Flor do Equinócio (Equinox Flower) (Yasujiro Ozu, 1958)
O cinema de Ozu parece tratar sempre das transições culturais — das mais brutas às mais sutis — do Japão do pós-guerra. A história trata de como um pai que tem, na teoria, visões “pra-frentex”, como dizia o outro, tratará a sua teoria na prática, quando a filha está em idade e demonstra abertura ao casamento; e a mesma questão desde o ponto de vista da filha; e a tensão que emerge dessa transição para novos tempos e novas morais. No fundo, o amor sempre ganha (ao menos nos filmes do Ozu, ao que parece).
22. Vítimas da Tormenta (Shoeshine) (Vittorio de Sica, 1946)
Meninos que são forçados a crescer antes do tempo — e que, sem pais, sem orientação, sem proteção e sem perspectiva, acabam sendo vítimas de tragédias de toda sorte. Daqueles filmes de partir o coração.
23. Assim Nasce Um Homem (The Culpepper Cattle Co.) (Dick Richards, 1972)
Um bangue-bangue de respeito, o filme conta a história de Ben, um rapaz que sempre quis ser caubói e que, crescido, tem a chance de mostrar-se útil numa viagem longa (e precária que só) de transporte de gado e quem sabe assim alcançar o seu sonho. Ao longo da viagem, vamos descobrindo dramas ocultos, medos, pesares e nuanças de personalidade nos integrantes do grupo e acompanhando as escolhas de Ben conforme ele toma consciência do homem que quer (e que não quer) ser.
24. O Estranho (The Stranger) (Orson Welles, 1946)
A Comissão de Crimes de Guerra descobre uma pista para o paradeiro de um nazista foragido que mudara de identidade e sumira sem deixar rastro. Um investigador vai atrás e o descobre numa cidadezinha minúscula no interior do estado americano de Connecticut. Um filme dinâmico e uma grata surpresa na filmografia de Orson Welles.
25. Um Condenado À Morte Escapou (Un condamné à mort s'est échappé) (Robert Bresson, 1956)
Não querendo estragar o barato de ninguém, mas o enredo é exatamente o que está no título — e é um dos filmes mais angustiantes que já vi. Um soldado da resistência francesa é tornado prisioneiro e planeja a sua fuga, que nos parece impossível até o último momento (sem spoilers a mais). Bresson é mestre em dirigir atores de modo que eles não demonstrem um pingo de emoção e, para a nossa surpresa, isso só torna a situação toda mais angustiante — porque a angústia recai toda sobre nós. Que filme, meus amigos!
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Com esta lista, espero cumprir e renovar o propósito do Periódico de ser uma publicação sobre arte e cultura. Espero que 2025 seja um ano um pouco menos caótico e que eu possa me fazer mais presente aqui, neste espaço que tanto estimo, falando de obras que me impressionaram e como me impressionaram e fazendo uma espécie de curadoria pessoal e amistosa de obras que vejo, leio, ouço e experimento por aí. Como de costume, convido o leitor a deixar as suas impressões nos comentários (caso esteja lendo esta edição no aplicativo ou no navegador) ou respondendo ao e-mail (a este, no caso, se estiver lendo esta edição do conforto da sua caixa de entrada).
No mais, aproveito para deixar meus votos de um belo ano para os amigos e leitores; que 2025 seja generoso conosco e que, independentemente do que se nos apresentar, sejamos capazes de transformar todas as situações em proveitosas lições; e que seja um ano fecundo, criativo e próspero para todos nós.

Até a próxima edição!
Um grande abraço,
— Ana
Agora tenho boas - e muitas - horas de ''absolute cinema'' para maratonar. hahahaha
Já entraram na minha lista de filmes para assistir. As breves sinopses estão ótimas. Obrigado por compartilhar conosco